Texto de Ivan Montenegro
Tenho um encontro marcado contigo Eduardo Avaroa. Não falo do herói boliviano que viveu no século XIX, é claro, mas do parque nacional localizado no sul da Bolívia, que leva seu nome.
Jamais te esqueci, desde que cortei suas veias profundas naquele outubro frio de 2017. Só agora, 3 anos depois, relato essas memórias. Ou teria sido você Eduardo Avaroa, quem cortou a minha jugular?
Aquele 17 de outubro era para ser um dia tranquilo, apenas 428 separam Uyuni de San Pedro de Atacama, ‘cortando caminho’ pelo belíssimo parque Eduardo Avaroa. Sabíamos que as estradas, de rípio fofo com muitas pedras soltas em meio ao deserto, não eram nada boas, nosso amigo boliviano já nos alertava: ‘nosotros cruzamos muuiyy despacio’, assim mesmo, com ênfase no ‘muy’. Mas os iludidos e intrépidos motociclistas se sentiam confiantes. Romero, o mais experiente, foi quem preparou o roteiro com o esmero de sempre, na garupa sua incansável companheira Ariane. Eu viajava com minha filha Isabela, então com 18 anos, e Flávio, o mais leve, a não ser pelos incontáveis pacotes de snacks e bebidas.
Era uma viagem muito especial para mim, eu me sentia o pai mais feliz do mundo percorrendo 5 países e 8.300 km com a filha na garupa! Isabela debutava em viagens de longa distância, mas já nos primeiros dias testemunhamos a sua alegria e tenacidade.
Encontramos Eduardo Avaroa bem cedo naquela manhã de outubro, mas só deixamos suas veias semicerradas no final da tarde, exaustos e abalados. Não chegamos a percorrer 100 km. No meio do dia ali estava a minha moto deitada no chão árido, eu sentado do lado dela, tentando improvisar uma cabana com a minha jaqueta para proteger do sol, Isabela deitada no meu colo, imóvel, gemendo de dor.
Tive ódio de você aquele dia, Eduardo Avaroa, e por muitos dias mais. Todavia não te odeio mais, sei que a culpa não foi sua. Certa é a sua aspereza, mas o meu excesso de confiança, aliado à falta de experiência no off road contribuíram muito para aquele desfecho.
Mas vamos voltar um pouco no tempo, a aventura começara 8 dias antes, quando tomamos um avião para Rio Branco. Lá reencontramos nossas motos que havíamos despachado por terra, não antes de zanzar por diversos endereços. Achamos afinal uma pista, um telefone escrito na parede de um barracão, em um posto de gasolina, aquele era o endereço indicado, mas lá não havia ninguém. Finalmente conseguimos fazer contato com a transportadora e encontrar o local certo. Que alívio! Tudo pronto para nossa grande aventura.
No dia seguinte partimos para Cuzco, com pernoite em uma simpática pousada em Puerto Maldonado. Experimentamos um misto de muito calor e muita chuva, por fim o frio intenso e o terrível mal da altitude, que causou muitas dores de cabeça em mim e na Ariane. Dia livre para um passeio em Matchu Pitchu, dá-lhe chuva e náuseas. Nada que nos impedisse de desfrutar um dia inesquecível.
De Cuzco rumamos para a Bolívia, com pernoite em Puno para admirar o Lago Titicaca. Dali para Uynuni, o caos de La paz, a dificuldade para comprar gasolina, pois a grande maioria dos postos não vende o liquido precioso para estrangeiros, e sanduíches vorazmente devorados.
A noite caiu mais rápido do que imaginamos, envolvendo a estrada e nela as nossas motos. Restava ainda um bom chão pela frente até Uyuni, nosso destino, veio então o primeiro grande susto. ‘Havia uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho havia uma pedra’. Flávio passou por ela sem sequer nota-la, eu também passei, mas Romero acertou a pedra em cheio. Conseguiu segurar a moto ‘no braço’ e me alcançou, já com o pneu dianteiro quase sem ar, para avisar que tinha problemas. Percebi que a avaria era grande, Romero e Ariane estavam pálidos de susto. Primeiro com uma pedra e depois com uma marreta que tomamos emprestada, conseguimos voltar a roda o suficiente para segurar a pressão e nos permitir seguir viagem.
O impacto foi tão forte que bambeou os parafusos do guidão, fizemos o reaperto já em Uyuni. O reparo foi suficiente para garantir o prosseguimento da viagem e o pneu não apresentou mais problemas até Belo Horizonte, nosso destino final.
A visita ao Salar do Uyuni foi simplesmente deslumbrante. Isabela, com sua vocação para aventureira, já tinha traçado seu objetivo maior: encontrar os famosos espelhos d’agua e admirar os incríveis reflexos que eles produzem, além de tirar muitas fotos, mesmo que para isso tivesse que inutilizar seu tênis (e o meu também), devido ao sal. A época seca não era das melhores, mas ela não desistiu até encontrar um belo espelho d’agua e nos brindou com fotos maravilhosas. Como a felicidade fluía do seu rosto!
Então você entrou na história Eduardo Avaroa. No início nossa relação foi de afeto, confesso que me comovi quando adentrei suas terras altas, quando contemplei suas lagoas azuis e os flamingos se banhando sem nada temer, seus picos nevados emoldurando o céu incrivelmente azul, impossível não ficar maravilhado com natureza tão exuberante. Acho que tive uma epifania ali, senti uma lágrima escorrendo na minha face.
Mas logo veio a primeira queda, Flavio não conseguiu fazer uma curva, saiu do trilho e foi parar no chão. Não demorou para que eu fosse pelo mesmo caminho, uma, duas, três vezes. As quedas em areia fofa, à baixa velocidade, são até engraçadas, mas vão minando o físico e o psicológico. Afinal não é fácil levantar uma R1200GS com 3 malas, sem contar o galão de gasolina, reserva de emergência.
O jeito era tentar manter as rodas nos sulcos formados pelas rodas dos carros, fora deles era impossível passar. Num desses sulcos perdi o controle, Isabela caiu de mal jeito e sentiu dores no ombro. Pedi socorro. Romero foi para um lado e Flávio para o outro (morrendo de medo de ser atacado por um puma), ambos buscando ajuda, mas não passava uma vivalma. Perdi a noção do tempo, acho que passou uma hora, quiçá duas. A ajuda chegou com um grupo de turistas alemães, que Romero encontrou pelo caminho, com extrema simpatia e boa vontade eles levaram Isabela e Ariane até o posto de saúde mais próximo.
Nesse meio tempo a bateria do Romero arriou. Tivemos que fazer uma ‘transfusão’ de baterias. Mas a saga não parou por aí. Flávio e eu rumamos para o posto de saúde, Romero deveria estar logo atrás, mas não estava, ficou imóvel, com a moto atolada na areia. Quando por fim resolvemos voltar, Flávio caiu de novo, enquanto tentava encontrar um local mais propício para virar a moto, e lá ficou, já sem forças para aprumar a moto. Voltei sozinho para ajudar Romero, depois ajudamos Flávio, e seguimos para o posto de saúde.
Lá encontramos Isabela em perfeito estado, que alívio! Todos nos emocionamos e até hoje me emociono, enquanto escrevo essas linhas. Já era final da tarde, resolvemos seguir viagem pela rota principal. Adeus Eduardo Avaroa. Ou até breve. Vencidos, por ora.
Para coroar o dia, nos deparamos com a fronteira do Chile fechada, expediente encerrado. Foi preciso apelar para os oficiais da imigração, ‘estamos com uma garota que precisa de cuidados médicos’, dissemos. Nos deixaram passar. O pernoite foi na pequena cidade de Ollague, e o jantar, um saco de batata chips, dividido irmãmente entre os 5.
De Ollague para San Pedro de Atacama, dali para Santiado e então para Mendoza, onde fizemos uma pausa para desfrutar dos maravilhosos vinhos locais. Mas essa é outra história. A volta para casa foi uma esticada de 3.500 km em 4 dias.
Me faltam palavras para definir a experiência de viajar de moto com a própria filha, tem algo de sublime, enlevado, raro, sem par… Acho que é um misto de tudo isso.
Por Ivan Montenegro