Por: Ivan Montenegro
Dentro do capacete acontece do meu cérebro ferver, nem tanto pelo calor que faz nas torcidas estradas de Minas nesse sombrio verão de 2021, mas pela atividade frenética que sucede ali dentro daquela cápsula. Um eletroencefalograma atingiria os píncaros.
Sigo rodando por esse Brasilzão afora, explorando estradas e rincões, porque ficar parado não é uma opção. Mergulho em devaneios enquanto piloto a minha moto. Há algum tempo desejava escrever sobre o apaixonante e inusitado universo das motocicletas. É chegada a hora, pois as palavras borbulham como o suor do meu corpo.
Antes de mais nada devo esclarecer que ‘motocicleta’ é um substantivo feminino, portanto deve ser tratada como tal. Daí que muitos motociclistas adotam nomes femininos para suas motos. Temos que admitir que esse ainda é um universo bastante masculino, embora as mulheres venham ganhando espaço a cada dia, com louvor.
Devo esclarecer também que motocicleta não é um veículo, embora os dicionários insistam em defini-la como tal. Motocicleta é muito mais, é arte, paixão, aventura, estilo de vida. O fabuloso Robert Pirsig1 resume assim: “O verdadeiro veículo que conduzimos é um veículo chamado nós mesmos. Reparando uma motocicleta, trabalhando bem, com cuidado, tornamo-nos parte de um processo cujo fim é alcançar uma íntima paz de espirito. A motocicleta é principalmente um fenômeno mental”.
Feito esse pequeno preâmbulo, deixe-me apresentar minha companheira de estrada, Ângela. Assim vou chama-la – apenas para essa crônica -, seu apelido carinhoso é Pretinha, por ser uma Triple Black, seu nome de batismo é R1200GS e seu sobrenome BMW. Está comigo há exatos 4 anos e 110 mil km, acabou de fazer aniversário enquanto escrevia esse texto. Mas o meu xodó é uma Suzuki Marauder 2005, a Mara, uma raridade.
Com Ângela aprendi alguns segredos. Aprendi que rodar longas distâncias é uma questão psicológica, e que andar bem é matemática, mais precisamente de segundo grau: a2 (anatomia ao quadrado). Ou seja, como a anatomia do piloto se combina perfeitamente com a anatomia da motocicleta. No início Ângela e eu éramos ilustres desconhecidos, levou algum tempo até sentir que nos tornávamos uma coisa só vagando pelo espaço.
Já que o tema da nossa conversa são ‘devaneios sobre duas rodas’, falemos sobre o cérebro do motociclista, pois ele roda a mil. Dentro dele vamos destacar duas áreas distintas, a primeira chamo de Valentino Rossi, fica numa região superficial, aquela massa cinzenta e enrugada conhecida como córtex. A segunda chamo de ZCAS – Zona de Convergência do Atlântico Sul – simplesmente porque ela abarca um oceano de pensamentos (e de emoções também).
Valentino funciona no modo automático e controla tudo com rapidez e precisão, sem grande esforço. Envia ordens às mãos e aos pés para controlar velocidade, câmbio e freios, faz o corpo gingar de um lado para o outro, verifica de antemão raio e inclinação da curva, as condições do piso e gerencia até mesmo as funções mais sofisticadas do painel de controle. Valentino monitora todos os bólidos que aparecem no campo de visão, que ele entende como caixotes de variadas formas e tamanhos que passam zunindo por todo lado como um enxame de abelhas, faz cálculos precisos, consegue até mesmo prever o futuro.
ZCAS, por sua vez, é bem mais lenta, um verdadeiro bon vivant. Tem uma capacidade de processamento exorbitante, algo como centenas de exabytes, mais do que qualquer computador inimaginável, e fica bem ali na meiuca do cérebro, bem próximo do hipocampo e da amígdala. Pouco mais abaixo está a glândula pituitária, que esguicha endorfina, adrenalina e outras substancias na corrente sanguínea, produzindo as mesmas sensações como se houvera acabado de comer o inesquecível pudim da Tia Aurélia.
É ZCAS quem conta o tempo, e só por isso se cansa. Valentino nunca se cansa. ZCAS é o eu consciente. Algumas vezes se agita, outras se aquieta escutando música, divaga, lê os letreiros e frases de caminhão, observa o casal que passa, dá risada, derrama lágrimas, faz planos e toma resoluções (como a de escrever essa crônica). Agradece a Deus, lembra do meu pai, que me presenteou minha primeira moto quando entrei para a universidade, uma Honda ML 125, pensando bem acho que ele foi o grande responsável pela minha paixão pelas motos, bem como por eu ter me matriculado na universidade. O capacete é o meu terapeuta silencioso.
Numa manhã qualquer me levanto de bem cedo, como de hábito, tomo meu indefectível café e encontro Ângela na garagem, ela me aguarda submissa e ansiosa. Para onde vamos hoje? Isso não importa muito, ela insinua, o importante é dar a partida e ouvir o rugido inconfundível do leão. Se você quer ir de A para B, certamente haverá meios mais convenientes e confortáveis, mas se quer percorrer todo o abecedário, não tem nada melhor que a motocicleta.
Note que toda motocicleta tem uma personalidade, que lhe é conferida pelos engenheiros e designers que a criaram. É isso que faz Ângela ser o que é. Ela está mais para uma robusta ‘fraulein’ do que para uma moçoila bela e sensual. Mais para um camelo do que para um puma. É a famosa escola alemã, reconhecida por ir mais longe e não apresentar defeitos, uma verdadeira devoradora de estradas. Lembra um pouco Angela Merkel, ela mesma forjada sob a cortina de ferro do pós-guerra, assim como as icônicas motocicletas alemãs. Daí o apelido, veja como tudo se encaixa. De fato, Ângela é a grande estrela por onde passa, prova disso são as inúmeras pessoas que se aproximam para puxar conversa ou tirar uma foto, me refiro à motocicleta, claro, embora Merkel também atraia alguns holofotes.
Michael Kockritz2 diz que a motocicleta intensifica nossa habilidade de viver o momento e o sabor da liberdade. Seduz com a harmonia do estilo e design, ou mesmo com nostalgia e tecnologia. Pergunta o autor: onde, senão em uma motocicleta, você pode se sentir totalmente relaxado e ainda viajar rápido? Essa sensação única de liberdade é o que une os motociclistas, que formam uma verdadeira comunidade de espíritos livres.
De moto a gente vê o mundo de um jeito diferente, não há limites, estamos integrados à cena, o vento no corpo, o cheiro da cana e da lama, os incontáveis tons de verde, o céu azul imenso, o sol e a chuva, os insetos explodindo na viseira do capacete. Não existe monotonia no dicionário do motociclista. Já reparou como o carro nos faz carrancudos e irascíveis? Essas também são palavras inexistentes para quem viaja de moto. Ainda que os contratempos existam, e sejam de fato comuns, no fim das contas o espirito de aventura e a fraternidade entre motociclistas, que sequer se conheciam há meia hora, falam mais alto.
Mais uma viagem vai chegando ao fim, na memória ficam indelevelmente gravadas as distâncias percorridas, os momentos únicos, a emoção, a realização pessoal, o sorriso de quem se faz criança, a camaradagem e amizade. A motocicleta, sempre fiel e extraordinária, cumpre seu ofício de nos fazer confundir fantasia e realidade, de produzir sonhos em movimento, nas palavras de Ricardo Lugris3.
A motocicleta realmente proporciona coisas incríveis.
Notas:
- Robert M. Zen Pirsig e a Arte de Manutenção de Motocicletas: Uma Investigação sobre Valores. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1985.
- Michael Kockritz. Motorcycle Passion (Introdução). Kempen: TeNeues Media, 2015.
- Ricardo Lugris. Tempo em Equilíbrio: Entre Paris e Singapura. São Paulo: Fontenele Publicações, 2017.
Que maravilha de texto ! Cumprimentos !!!