Por: Ivan Montenegro

Tudo na Amazônia é superlativo, a vasta floresta, os rios oceânicos, a vida por conhecer, o ar úmido e quente, e a Transamazônica, cortando a imensidão.

As enormes distâncias e a precariedade das estradas são a razão de tão poucos se aventurarem pela região. Viajo sozinho, sinto falta da camaradagem, usual entre motociclistas, pois são poucos os que encontro por aqui. O frio na barriga vai dando lugar à sensação de estar em casa quanto mais avanço, talvez pelas minhas raízes paraenses (do meu lado materno), talvez por ter morado no sul do Pará, ou simplesmente pelo prazer que a moto proporciona, enquanto a estrada passa veloz sob meus pés.

A Amazônia desperta sensações as mais diversas e igualmente superlativas. De um lado o sentimento de insignificância e pequenez, do outro, o de um desbravador quixotesco, não de 7 mares, mas de 7 rios (Jamanxim, Tapajós, Amazonas, Xingu, Tocantins, Mearim e Preguiça). Os sentidos são aguçados pelo cheiro da terra, pelo pôr do sol, pela voz da mata, pelo paladar singular e pela gente simples.

Meu plano de viagem inclui a BR 230, a lendária Transamazônica, e a BR 163, outra rodovia considerada ‘perdida’ por muito tempo. Inclui ainda uma parada em Alter do Chão e outra nos Lençóis Maranhenses, onde encontraria a família para um descanso merecido. Na volta para Belo Horizonte percorreria todas as capitais do Nordeste.

A Transamazônica foi inaugurada em 1972, mas jamais foi concluída. Até hoje, quase a metade dos seus 4.223 km permanece não pavimentada; o trânsito é impraticável no aguaceiro do inverno amazônico, ao passo que no verão seco, o desafio é a poeira. Essa poeira é conhecida como ‘poaca’ (ou ‘puaca’), ela cobre valas e buracos, que ficam imperceptíveis, mas quando levantada pelas rodas dos veículos é a estrada que se torna invisível. O único remédio é a cautela.

Minha viagem se deu em julho de 2021, período seco na Amazônia, repleto de poaca. Depois de estudar as opções, decido percorrer um trecho de 984 km da Transamazônica, de Mirituba a Marabá, ambas cidades paraenses. De Mirituba a Medicilândia encontro pequenos trechos de asfalto, mas a maior parte de terra, daí a Novo Repartimento pavimento em boas condições, depois mais um pequeno trecho de terra e então asfalto até Marabá. Atenção especial às pontes, quase todas possuem desvios, ainda são as velhas pontes de madeira, em péssimas condições, as de concreto ainda não estão interligadas, em sua grande maioria. Dos quase mil quilômetros percorridos, aprox. 300 são de terra, e haja poaca!

Já habituado às condições da estrada, vou pilotando com todo o cuidado em um trecho de terra bastante precário, tentando desviar dos buracos, quando vejo uma Honda Pop vermelha chegar de repente e me ultrapassar, o audaz piloto parecia conhecer muito bem a estrada e não se intimidar pela poaca. Tampouco tomou conhecimento da minha BMW munida de uma sopa de letras: ABS, DTC, D-ESA, MSR, RDC, PRO, ETC. A Pop reina absoluta por aqui, elas pululam por toda parte, vermelhas e brancas, na grande maioria. Na primeira oportunidade pergunto ao orgulhoso proprietário de uma Pop se ele gostaria de trocar pela minha GS, mas ele não parece muito interessado.

Antes de seguir viagem, permitam-me dar um passo atrás. A rota que escolhi para alcançar a Transamazônica foi a BR 163, uma das principais ligações entre o Centro Oeste e o Norte, mas até bem pouco tempo considerada uma das rodovias ‘fantasmas’, ao lado da BR 319, que liga Porto Velho a Manaus, e da própria BR 230. Não mais, ela está totalmente pavimentada (ou quase isso, como veremos). Encontrei a BR 163 em Rondonópolis e me surpreendi com a estrada, duplicada e pedagiada, pelo menos até Cuiabá.

Mas a alegria durou pouco, de Nova Mutum a Sinop a estrada é estreita e lotada de caminhões, parece que metade da frota nacional transita por aqui. Também pudera, estou no celeiro do Brasil, os campos de algodão estão em flor, brancos como neve, as lavouras de milho aguardam pacientemente a colheita. O vento forte, aliado às condições da estrada, torna as ultrapassagens perigosas; em nenhum outro lugar do país experimentei bofetadas tão violentas desferidas pelo vento.                       Guarantã do Norte, ainda no Mato Grosso, ostenta o título de ‘Portal da Amazônia’, mas de fato pouco se vê da floresta amazônica, são as lavouras a perder de vista que dominam a paisagem, invadindo o sul do Pará. Os caminhões começam a ficar mais escassos, mas ainda são muitos, seguindo em direção ao Porto de Mirituba.

Já próximo ao lugarejo chamado Castelo dos Sonhos, encontro um trecho de aproximadamente 50 km de buracos superlativos, daqueles que ocupam toda a pista, não adianta sair para o acostamento pois ali também estará intransitável, os caminhões trafegam em zigzag, vale a lei do mais forte. Paro para um breve descanso e sou informado de que o lugarejo faz parte de Altamira, o maior município do país, quiçá do mundo, distante 970 km. Entre elas uma área de preservação imensa, chamada Terra do Meio, que compreende 11 Unidades de Conservação e 19 terras indígenas. Tenho a impressão que Castelo dos Sonhos é mesmo feito de sonhos, ainda por realizar.

Minha próxima parada é Novo Progresso, onde o rio Jamanxim me convida para um banho refrescante, sob o calor de 36º C. Dia de índio, foi como me senti. Na manhã seguinte saio com os primeiros raios do sol para encontrar a Transamazônica no lugarejo conhecido como Km 30, próximo a Mirituba; já falei da famosa rodovia nesta crônica, mas vale ressaltar que a recepção foi à altura, com direito a toneladas de poeira. Sigo até Rurópolis e novamente tomo a BR 163 até Santarém, e daí para Alter do Chão.

Alter do Chão, é um lugar pitoresco, de encher os olhos, do verdor da floresta ao azuláceo do rio Tapajós, com seus bancos de areia branca e o charme do vilarejo. Sem falar dos pratos inesquecíveis como o tucunaré grelhado e o pirarucu em crosta de jambu do Ty. Ali perto, já em Santarém, o Tapajós encontra o Amazonas, vale uma visita pela cidade histórica, conhecida como a ‘Pérola do Tapajós’. É sem dúvida um belíssimo destino para fazer de moto, com direito a uma praia de água doce sem rival.

Hora de seguir viagem para Altamira; uma parada numa garapeira em meio à poeira da estrada, tomo uma garapa refrescante, avisto de um lado a reserva indígena Arara, do outro, lavouras de cacau e gado. A poaca invade os meus sonhos na tranquila Altamira, levanto agitado e sigo para a travessia de balsa do rio Xingu, me detenho adiante para admirar o colossal projeto de Belo Monte. Observo no horizonte as escassas castanheiras e as palmeiras de babaçu, testemunhos que restam da floresta. Mais uma parada, dessa vez para um açaí natural com tapioca e farinha d’agua, que minha avó tomava com a melhor boca do mundo, superlativo!

Finalmente chego a Marabá onde deixo a Transamazônica e cruzo mais um portento de rio, o Tocantins. Tomo a BR 222 com destino à ilha de São Luís, que fica na bela baía de São Marcos, onde deságua o Mearim. Os próximos dias serão com a família, longe da motocicleta, o rio Preguiça é a via de acesso ao formidável Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Tão grandes são os encantos desse lugar que não me atreverei a descrevê-lo aqui, merece um capítulo à parte.

Ainda na altura de Vitória do Mearim, a caminho de São Luís, encontro outro trecho bastante precário, só buraco. Esses buracos são entidades vivas, parecem obedecer à risca a ordem bíblica: ‘crescei e multiplicai-vos’. Começo a imaginar do que eles se alimentam, possivelmente toda sorte de coisas ruins, como a negligência e a inépcia. Estou pilotando a minha moto na ponta dos dedos, com todo o cuidado, quando olho pelo retrovisor e vejo um ponto vermelho se aproximando rapidamente. Sim! É uma Pop vermelha…

 

Uma resposta

  1. Maravilhoso o texto! A riqueza de detalhes fez eu me transportar para a cena descrita!

    Criando a vontade de um dia realizar uma trip dessa. Quem sabe numa pop vermelha? Rs

    Abs.

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